Seguidores google+

terça-feira, 10 de março de 2020

JORNADA DE 12 DE AGOSTO DE 1904

 JORNADA DE 12 DE AGOSTO DE 1904 

                                                                                                               JACQUES RAIMUNDO 

UMA PÁGINA DE RECORDAÇÕES, gratas e emotivas recordações de um feito, que se não havia de crer que fosse de um grupo de meninos. Eram sete apenas. O próprio número, que se tem por cabalístico, afigura-se que já prenunciava alguma coisa que fôra uma surprêsa. O de mais idade não ia além dos quinze anos. E todos eram estudantes: Flávio da Silva Ramos e Emanuel Sodré, do Colégio Alfredo Gomes; Artur César de Andrade, Vicente Cardoso, Jacques Raimundo, Otávio e Alvaro Werneck, do Ginásio Nacional, que antes se chamara e hoje, de novo e muito justamente, se  chama Colégio Pedro II. Alvaro Werneck tinha anteriormente frequentado o Colégio Abílio. 

Da juventude, inquieta e ávida, é próprio que sonhe, até de olhos abertos, afagando um ideal ou mais de um. Agita-se e planeia o que se admite sequer por impossível. Mas, às vêzes, o que se crê instável ou variável, sem desígnio de vingar, é o esbôço ou início de uma realidade, que se vem a configurar numa glória, útil e luminosa. Assim foi o que imaginaram os sete meninos da jornada de 12 de Agosto de 1904. A despeito das vicissitudes e dos obstáculos, aí está a obra dos sete, vitoriosa e sólida. O destino estava-lhe superiormente delineado, sobrevindo-lhe a boa vontade e a segurança da colaboração de muitos que a aplaudiram, a continuaram, a engrandeceram. 

Aos sete impressionou-os fundamente a existência do Paissandu, do Rio-Cricket e do Fluminense, nos quais se praticava o esporte bretão, dignificado pelos ingleses. O Fluminense andava apenas no segundo ano, já com tantos para dois quadros, procedendo a treinos no campo aberto da Rua Guanabara. A idéia de um grêmio de futebol, no bairro de Botafogo, considerou-a primeiro Flávio Ramos que, aliando-se a Emanuel Sodré, diligenciou a adesão de Artur César, Vicente Cardoso, Otávio Werneck e Jacques Raimundo, que então assinava Jacques R. F. da Silva. Estes, alunos do Externato do Ginásio Nacional, na antiga Rua Larga ao pé da Igreja de São Joaquim, já batiam bola no Campo de Sant'Ana e jardim da Praça da República. Gabarolavam-se até dos seus heróis hoje chamados cracks, na verdade uns "estouros" (esta a significação do têrmo inglês, que deveria ser substituído por cracker, menos irônico e contaram-se também algumas vítimas, como Henoch dos Reis, que partira o braço esquerdo, trazendo-o por muito tempo engessado e na tipoia. A Flávio Ramos pareceram elementos bons ou aproveitáveis. Quanto a Álvaro Werneck pode dizer-se que Flávio o aliciou valentemente, convencendo-o a afastar-se do Internacional, clube que se tramava fundar. 

As Laranjeiras tinham já o seu clube. Botafogo deveria ter o seu. Essa idéia desassossegava a Flávio Ramos e como que o tormentava instigando-o a dotar o seu bairro com uma agremiação esportiva, que reputava uma melhoria e dignidade. Do Colégio Alfredo Gomes, o seu colégio, tinham saído fundadores e adeptos do Fluminense; de lá deveriam sair, ao menos, dois para o clube que ideava para o bairro de Botafogo. E assim foi. Saiu êle e Emanuel Sodré. O plano estava assentado e os companheiros já os havia conseguido, se tinham convindo com entusiasmo. O entusiasmo por si já era um pacto indestrutível. A sinceridade os unira todos para a consumação do ideal. 

Numa sala, antes um quarto, de um casa a um canto do Largo São Clemente, quase à esquina da Rua Humaitá, fundou-se o clube que foi o Botafogo Football Club. Eram mais ou menos duas horas da tarde uma quarta-feira. Escolheu-se logo a diretoria: presidente, Flávio  Ramos vice-presidente, Otávio Werneck; secretário, Jacques Raimundo tesoureiro, Álvaro Werneck. Do quadro cuidar-se-ia depois, impondo-se logo a dificuldade para um segundo, sem o qual por certo não se poderia treinar. Contudo, haveria bate-bola. Ao dia seguinte, somaram-se aos sete Miguel Rafael de Pino e Lourival Costa. Como em tôda viagem ou emprêsa há os que ficam em meio, interpondo-se a fatalidade, já não existem Otávio Werneck, Vicente Cardoso e Lourival Costa. 

O dinheiro de que se não dispunha, -- tão pouco era êle ou quase nenhum , comprovar-se-ia com o recibo de um clube de ciclismo não sobrevivera, o Electro-Club. O bloco, ainda virgem, cedera-o Alfredo Chaves que, anos depois, por serviços relevantes, seria proclamado sócio benemérito. Foi assim Alfredo Chaves um como benfeitor, mas a grande benfeitora dos primeiros tempos foi urna senhora, D. Francisca Teixeira de Oliveira, a D. Chiquitota, avó materna de Flávio Ramos. 

O Largo de São Clemente, que se julga ser o verdadeiro Largo dos Leões, apesar das palmeiras, mas entre os seus renques, improvisou-se e utilizou-se como ground. Naquele tempo não ocorria senão a nomenclatura inglêsa, ausentes as cócegas dos puristas arrebatados. Dizia-se e escrevia-se fuootball sem a roupagem à portuguêsa nem o substituto estapafúrdio à grega. Jogava-se e tem-se jogado futebol, bom ou mau mas inteligível, com defêsa cerrada e marcação por zonas, ou sem meia nem outra. Não havia técnicos, mas atuava o captain ou capitão, arguto ou a propósito, como guia hábil do team. Jogava-se com a compreensão de um dever, sem se rasparem as arcas dos clubes. 

O Largo de São Clemente foi o primeiro campo, ou a primeira cancha a peruana. As janelas das casas que o ladeavam, passaram a vitimas dos novos e ardorosos footballers, quebrando-se com freqüência os seus vidros. Mas D. Chiquitota, munificante, além de ministrar o money para as bolas, ajudava a repor as vidraças estilhaçadas. Todavia, moradores e segadores eram felizes, divertindo-se apesar dos sustos, — os moradores por causa das janelas ameaçadas, os jogadores afoitos por causa dos bondes com o seu tráfego importuno.. . A pique, convem lembrar-se que Mimi Sodré, que teria uns doze anos, não admitira Flávio Ramos que participasse do ato da fundação, porque era muito menino. Aqui, menino era o mesmo que pequeno. Havia de contentar-se com ser gandula e o foi como o foi Paulo Azeredo. O gandula era o garoto apanhador da pelota que escapava nos bate-bolas, e os dois foram gandulas de uma invejável dedicação. O destino, nessa dedicação, marcava-os reservando-lhes situações que os recomendariam ao respeito e ao reconhecimento. Mimi seria um jogador excelente, um dos campeões de 1910. Paulo Azeredo seria, como é de novo, o presidente dinâmico, — exemplo de administrador incansável e perfeito. 

Desde os primeiros dias, a torcida se arregimentou, mas uma torcida de escol, comandada pelo coração, pela ternura do afeto e da amizade. Era a irmã de Flávio Ramos, Cordélia, cuja família morava ali mesmo, em frente às palmeiras, no 508 da rua de São Clemente. Cordélia da Silva Ramos, hoje a Viúva Perry, era uma como uma padroeira dos sete de 1904. Atualmente, figura um símbolo que merece dos que restam, a mais alta estima e o mais afetuoso respeito, como a sua primeira torcedora ou party-woman. Eram as irmãs de Miguel Rafael de Pino e as de Jacques Raimundo, dentre as quais a mais ternamente exaltada era a mais velha, a êsse tempo com doze anos, Ester, morta há dois anos. Era ela que, à volta de Jacques Raimundo, suado, com as botas escalavradas, às vêzes até enlameadas, ultrapassando a hora da refeição, o desculpava e o defendia ante a mãe, sèriamente agastada: "São travessuras que se perdoam.. ." — repetia ela na sua bondade infinita. 

A recordação, a esta altura, sabe já à saudade, suave e imorredoura, de um tempo de invejável fortuna.... 

“um, tempo que passou, e que não volta mais

quando íamos a, rir pela existência fora". 

Cabe aqui um comentário, ainda oportuno. Um autor de quinhentos disse que as musas não faziam mal aos doutores, e certo, pois que êle era poeta e era doutor em leis. O esporte (agrada-nos escrever aqui esporte, não obstante a sua anglicanidade, mas que deporte ou deporto, desporte ou desporto, de fato antigos, mas não menos estranhos, respectivamente do provençal e do italiano , o esporte não pode nem dever fazer mal a ninguém. O futebol não prejudicou a nenhum dos sete de 12 de Agôsto, nem a outros. E diga-se o que vieram a ser os dois, dos quais a morte se culpa pela ausência definitiva, e o que são os sobreviventes. Otávio Werneek doutourou-se em medicina e, quando faleceu, fazia parte do Instituto Médico-Legal. Vicente Cardoso, que, quando estudante. se chamava Vicente de Oliveira Cardoso, foi o grande Vicente Licínio Cardoso, escritor, educador, filósofo, catedrático da Escola Politécnica, hoje a Escola Nacional de Engenharia. 

Flávio Ramos, cujo cuidado amofinante é o de que não o suponham um ancião, apesar das cãs, por ter sido um dos fundadores do quinqua-genário Botafogo de Futebol, bacharelou-se em direito e exerce a advocacia com brilho. Emanuel Sodré seguiu a magistratura e é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Alvaro Werneck é promotor do Tribunal de Contas da União. Arthur César é engenheiro. Jacques Raimundo é o mais obscuro; todavia, sendo campeão de concursos, alcançou ser catedrático do Instituto de Educação e professor Colégio Pedro II. Mimi Sodré, o gandula que foi como uma testemunha da jornada de 12 de Agosto, é hoje o Almirante Benjamim Sodré. 

Bons tempos aqueles, em que êles e outros, não menos prestimosos se dispunham a partidas e competições, cada um viajando de bonde própria custa, e levando os vários petrechos, — camisa, calção, joelheiras, meias, xuteiras.. . e até a bola, num embrulho de papel de jornal! Tudo se fazia sem outro interêsse que o ímpeto do entusiasmo e o fervor da lealdade! Isto é a bravura e a verdade de alma de um botafoguense. Agosto de 1954. 

Acervo particular Alceu Oliveira Castro Jungsted

Fonte: Boletim Oficial do BFR nº 105 de agosto de 1954


Nenhum comentário:

Postar um comentário